Para se entender corretamente o cristianismo, fazem-se necessárias algumas distinções, aceitas pela grande maioria dos estudiosos. Assim, importa distinguir entre o Jesus histórico e o Cristo da fé. Sob o Jesus histórico se entende o pregador e profeta de Nazaré.
Outra distinção é entre Reino de Deus e Igreja. Reino de Deus é a mensagem originária de Jesus. Significa uma revolução absoluta, redefinindo as relações do ser humano com Deus, com os outros, com a sociedade e com o universo. A Igreja só foi possível por causa da rejeição de Jesus, e com a não realização do Reino. Ela, como comunidade organizada de fiéis, é uma construção histórica, tentando levar avante a causa de Jesus nos diferentes tempos e culturas.
Outra distinção importante é entre a tradição de Jesus e a religião cristã. A tradição de Jesus se situa anteriormente à escritura dos evangelhos, embora esteja contida neles. Os evangelhos foram escritos de 30 a 60 anos depois da execução de Jesus. Nesse entretempo, já se haviam organizado comunidades e igrejas, com suas tensões, conflitos internos e formas diferentes de organização. Os evangelhos refletem e tomam partido dentro dessa situação.
Dentro desse emaranhado, o que significa a tradição de Jesus? Em primeiro lugar, vem o sonho de Jesus: o Reino de Deus como uma revolução absoluta da história e do universo. Depois, sua experiência pessoal de Deus transmitida aos seguidores: Deus é Paizinho (Abba), cheio de amor e de ternura. Sua característica especial é a misericórdia, pois ama até os ingratos e maus (Lc 6,35). Em seguida, prega e vive o amor incondicional, que é posto na mesma altura que o amor a Deus.
Outro ponto é conferir centralidade com os pobres e invisíveis. Eles são os primeiros destinatários e beneficiários do Reino. Outro ponto importante é a comunidade. Ele escolheu 12 para viver com ele; o número 12 é simbólico: representa a comunidade das 12 tribos de Israel e a comunhão entre todos os povos. Por fim, é o uso do poder. Só se legitima aquele uso que é serviço, e seu portador deve sempre buscar o último lugar.
Esse conjunto de valores e visões constitui a tradição de Jesus. Não se trata de uma instituição, doutrina ou disciplina. O que Jesus queria era ensinar a viver, e não criar uma nova religião com fregueses piedosos de uma instituição religiosa. A tradição de Jesus é um sonho bom, um caminho espiritual, que pode ganhar muitas formas e que pode ter seguidores também fora do quadro eclesial.
Ocorre que essa tradição de Jesus se transformou, ao longo da história, numa religião, na religião cristã: uma organização religiosa, na forma de diversas Igrejas, especialmente na Igreja Católica Romana. Elas se caracterizam por ser instituições com doutrinas, disciplinas, determinações éticas, formas rituais de celebração e cânones jurídicos. A Igreja Católica Romana concretamente se organizou ao redor da categoria poder sagrado (sacra potestas), todo concentrado nas mãos de uma pequena elite que é a hierarquia, com o papa na cabeça, com exclusão dos leigos e das mulheres. Ela detém as decisões e o monopólio da palavra. É hierárquica e criadora de grandes desigualdades. Ela se identificou com a tradição de Jesus.
Em que reside o fascínio da figura e dos discursos do papa Francisco? Reside no fato de se ligar diretamente à tradição de Jesus. Afirma que “o amor vem antes do dogma, e o serviço aos pobres, antes das doutrinas” (“Civiltà Cattolica”). Sem essa inversão, o cristianismo perde “o frescor e a flagrância do evangelho” e se transforma numa ideologia e numa obsessão doutrinária.
Não há outro caminho para a recuperação da credibilidade perdida da Igreja senão voltar à tradição de Jesus, como o faz sabiamente o papa Francisco.
Leonardo Boff
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