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DE WILSON BATISTA A IGOR KANNÁRIO: quem é do gueto não gosta da polícia. Por que será?
A indignação de alguns amigos com relação ao Igor Kannario e seu sucesso no carnaval não me surpreende. Se a crítica é musical, aceito numa boa. Menos de quem ouve Ivete Sangalo e adjacências, como se isso fosse de uma superioridade musical estratosférica. Eu não seguro a minha língua quanto às críticas de que se trata de uma apologia ao crime ou à degradação da sociedade civilizada etc etc etc. Degradação da sociedade é o HSBC, e todo mundo come caladinho, sobretudo a imprensa.
Votando à canariCULTURA, lembro que o que o Igor Canário (se escreve Kannário) fez e faz não é novidade. E sempre foi visto como algo pernicioso, sobretudo para a classe média. E também para a polícia.
Wilson Batista era reconhecidamente um malandro carioca, presos inúmeras vezes, com muitos amigos marginais, cujas letras frequentemente versavam sobre a malandragem ou como diz a Ciência do Direito, cheia de garbo, letras que trasitavam entre o “contínuo de licitudes e o descontínuo ilicitudes”. “Lençol no pescoço”, samba de Wilsom gravado em 1933 por Silvio Caldas, é uma ode à malandragem. Uma apologia à vida fácil, com desprezo ao trabalho.
“Sei que eles falam Deste meu proceder Eu vejo quem trabalha Andar no miserê Eu sou vadio Porque tive inclinação Eu me lembro, era criança Tirava samba-canção Comigo não Eu quero ver quem tem razão”.
O velho Moreira da Silva, rei do samba de breque, fez do malandro um herói. De forma brilhante, registre-se. Em “Na subida do morro”, outro clássico, uma parceria dele com Ribeiro Cunha, ele ameaça, corta e estraçalha um desafeto com a navalha.
“Você mesmo sabe Que eu já fui um malandro malvado Somente estou regenerado Cheio de malícia Dei trabalho à polícia Prá cachorro Dei até no dono do morro Mas nunca abusei De uma mulher Que fosse de um amigo Agora me zanguei consigo Hoje venho animado A lhe deixar todo cortado Vou dar-lhe um castigo Meto-lhe o aço no abdômen E tiro fora o seu umbigo”
E o que dizer de Bezerra da Silva com Malandragem dá um tempo (Vou apertar, mas não vou acender agora) ou de “Os direitos do otário”?
“Quem fala alto é malandro E conhece a barra pesada Otário só tem dois direitos Tomar tapa E não dizer nada. (...) É que aonde pintar Um otário Tem caguetagem e malícia Otário é a imagem do cão E também cachorrinho De policia.”
Pobre é quem produz cultura nesse país, já nos ensinou o Ariano Suassuna. Eu posso não gostar, mas Igor Canário (se escreve Kannário) está fazendo somente isso. Produzindo cultura. No gueto e com o gueto. E do gueto para cada bairro de Salvador e o interior do estado. Qual o problema disso? É que eu não gosto do que ele canta? Discordo da letra? Porra, eu não gosto de 95% do que eu escuto, e nem por isso quero amordaçar o gueto.
Somente acho trágico assistir ao Estado brasileiro entrar nos guetos somente para assassinar a juventude negra, e depois ver nossa classe média, cinicamente, apontar o dedo para Igor Canário (se escreve Kannário). Se o Estado brasileiro só entra no gueto para matar, vocês, indignados, esperam em troca quais manifestações culturais?
Por que será que o gueto, desde Wilson Batista e antes dele, não gosta da polícia e apoia quem vai contra ela?
Tudo nosso, nada deles. Charles Carmo
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