segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Quem é do gueto não gosta da polícia. Por que será?

Charles Carmo
Charles Carmo
DE WILSON BATISTA A IGOR KANNÁRIO: quem é do gueto não gosta da polícia. Por que será?

A indignação de alguns amigos com relação ao Igor Kannario e seu sucesso no carnaval não me surpreende. Se a crítica é musical, aceito numa boa. Menos de quem ouve Ivete Sangalo e adjacências, como se isso fosse de uma superioridade musical estratosférica. Eu não seguro a minha língua quanto às críticas de que se trata de uma apologia ao crime ou à degradação da sociedade civilizada etc etc etc. Degradação da sociedade é o HSBC, e todo mundo come caladinho, sobretudo a imprensa.

Votando à canariCULTURA, lembro que o que o Igor Canário (se escreve Kannário) fez e faz não é novidade. E sempre foi visto como algo pernicioso, sobretudo para a classe média. E também para a polícia. 

Wilson Batista era reconhecidamente um malandro carioca, presos inúmeras vezes, com muitos amigos marginais, cujas letras frequentemente versavam sobre a malandragem ou como diz a Ciência do Direito, cheia de garbo, letras que trasitavam entre o “contínuo de licitudes e o descontínuo ilicitudes”. “Lençol no pescoço”, samba de Wilsom gravado em 1933 por Silvio Caldas, é uma ode à malandragem. Uma apologia à vida fácil, com desprezo ao trabalho.

“Sei que eles falam
Deste meu proceder
Eu vejo quem trabalha
Andar no miserê
Eu sou vadio
Porque tive inclinação
Eu me lembro, era criança
Tirava samba-canção
Comigo não
Eu quero ver quem tem razão”.

O velho Moreira da Silva, rei do samba de breque, fez do malandro um herói. De forma brilhante, registre-se. Em “Na subida do morro”, outro clássico, uma parceria dele com Ribeiro Cunha, ele ameaça, corta e estraçalha um desafeto com a navalha.

“Você mesmo sabe
Que eu já fui um malandro malvado
Somente estou regenerado
Cheio de malícia
Dei trabalho à polícia
Prá cachorro
Dei até no dono do morro
Mas nunca abusei
De uma mulher
Que fosse de um amigo
Agora me zanguei consigo
Hoje venho animado
A lhe deixar todo cortado
Vou dar-lhe um castigo
Meto-lhe o aço no abdômen
E tiro fora o seu umbigo”

E o que dizer de Bezerra da Silva com Malandragem dá um tempo (Vou apertar, mas não vou acender agora) ou de “Os direitos do otário”?

“Quem fala alto é malandro
E conhece a barra pesada
Otário só tem dois direitos
Tomar tapa
E não dizer nada.
(...)
É que aonde pintar
Um otário
Tem caguetagem e malícia
Otário é a imagem do cão
E também cachorrinho
De policia.”

Pobre é quem produz cultura nesse país, já nos ensinou o Ariano Suassuna. Eu posso não gostar, mas Igor Canário (se escreve Kannário) está fazendo somente isso. Produzindo cultura. No gueto e com o gueto. E do gueto para cada bairro de Salvador e o interior do estado. Qual o problema disso? É que eu não gosto do que ele canta? Discordo da letra? Porra, eu não gosto de 95% do que eu escuto, e nem por isso quero amordaçar o gueto.

Somente acho trágico assistir ao Estado brasileiro entrar nos guetos somente para assassinar a juventude negra, e depois ver nossa classe média, cinicamente, apontar o dedo para Igor Canário (se escreve Kannário).
Se o Estado brasileiro só entra no gueto para matar, vocês, indignados, esperam em troca quais manifestações culturais?

Por que será que o gueto, desde Wilson Batista e antes dele, não gosta da polícia e apoia quem vai contra ela?

Tudo nosso, nada deles.
Charles Carmo
Wilson Batista - Lenço no pescoço
Compositor: Wilson Batista Intérprete: Sílvio Caldas Gravado em 1933 na VICTOR

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